Série “Fomento Serrapilheira” #2
A Pró-reitoria de Pesquisa apresenta a série “Fomento Serrapilheira”. O objetivo é divulgar as pesquisas científicas de professores da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) que obtiveram financiamento através de chamadas públicas do Instituto Serrapilheira.
O Instituto Serrapilheira é uma instituição privada e sem fins lucrativos fundada em 2017. O propósito da instituição é fomentar e valorizar a pesquisa brasileira, com ênfase em áreas como matemática, ciências da computação e naturais – a qual engloba geociências, física, química, biologia etc. O Serrapilheira atua por meio de programas voltados para o apoio, formação e divulgação científica.
O nome “serrapilheira” refere-se à camada que fica acima do solo, formada por matéria orgânica como vegetais, restos de animais e excretas. Sua importância reside no fato de que é uma das principais vias de retorno de nutrientes ao solo.
A segunda pesquisadora entrevistada para a série é Suzana Alcantara, professora adjunta do no Departamento de Botânica da UFSC desde 2016. Ela é graduada em Ciências Biológicas pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde também concluiu seu mestrado em Ecologia. Pela Universidade de São Paulo (USP), Suzana tornou-se doutora em Ciências Biológicas com ênfase em Botânica. Durante seu pós-doutorado passou por instituições como a USP, a Universidade da Califórnia – Berkeley, e a UFSC.
Suzana obteve suporte do Instituto Serrapilheira para desenvolver seu projeto intitulado “Um sonho Darwiniano dentro de um pesadelo taxonômico: explorando radiações evolutivas para a prospecção de genes adaptáveis às mudanças climáticas em Velloziaceae”. A pesquisadora produz conhecimento bruto sobre plantas nativas do Brasil para que, posteriormente, seja possível assegurar produções agrícolas em cenários ambientais extremos – de seca ou chuvas em excesso.
Qual o foco da sua pesquisa?
Entender os processos de adaptação biológica que levaram ao surgimento de um grande número de espécies de plantas em condições extremas: áreas de solo rochoso, com poucos nutrientes, sujeitas a secas longas e frequentes, grande variação de temperatura e incidência de luz solar. Essas áreas ocorrem principalmente na Cadeia do Espinhaço, em áreas de montanhas que fazem a transição entre as vegetações de Mata Atlântica, Cerrado e Caatinga, e o grupo de plantas que estudei nesse projeto é conhecido como plantas de ressurreição, pois são capazes de perder água e permanecer secas por toda a estação seca e “reviver” com a volta da chuva. Focamos tanto em descrever essa diversidade de espécies e de estratégias ecológicas que permitem às plantas sobreviver nessas condições quanto na caracterização genômica e molecular dessas espécies e estratégias, o que nos permite investigar quando e quais foram as pressões que levaram à evolução da grande diversidade de plantas nessas áreas.
Exemplar da família Velloziaceae, objeto de estudo de Suzana. (Foto: acervo pessoal)
Como sua pesquisa pode beneficiar a comunidade?
O principal benefício é o conhecimento em si: o Brasil é o país com o maior número de espécies de plantas no mundo e ainda não fazemos ideia de como e o porquê de tantas espécies surgirem aqui, ainda mais nas áreas com condições tão áridas como aquelas que estudo. Em tempos de mudanças climáticas e com a destruição de habitats naturais, é primordial conhecer a biodiversidade e entender os fatores que contribuem para que as espécies existam e possam continuar existindo, já que nossa biodiversidade é um ativo estratégico do país em contexto global. A longo prazo, este projeto também está fornecendo subsídios para a pesquisa aplicada à agropecuária, particularmente ao grupo de pesquisa da EMBRAPA Bioinformática/ Unicamp, que visa a produção de cultivares agrícolas adaptados ao clima que está por vir, onde eventos extremos (seja de seca ou pluviosidade concentrada) serão cada vez mais frequentes em decorrência das mudanças climáticas atuais. Mais especificamente, os genes correlacionados às diferentes estratégias de sobrevivência das espécies nativas que estudamos neste projeto estão sendo investigados em laboratório a partir de experimentos controlados e, posteriormente, alguns destes genes serão selecionados para teste em cultivares agrícolas já estabelecidas (especialmente milho).
O intuito é criar cultivares adaptados e mais produtivos em clima mais seco e dependente de menos nutrientes no solo, a partir do conhecimento e manipulação dos genes que permitiram às espécies nativas do Brasil evoluírem em condições semelhantes. Além do potencial de afetar diretamente nossa segurança alimentar, a produção (bio)energética é outra área estratégica que pode ser beneficiada diretamente pelos estudos genômicos de plantas nativas visando a adaptação de cultivares de cana-de-açúcar, por exemplo, para climas futuros, permitindo independência dos combustíveis fósseis que tornam-se cada vez mais inviáveis tanto economicamente quanto ambientalmente – apesar da postura política negacionista de se investir na pesquisa com carvão mineral recentemente anunciada pela agência estatal de financiamento à pesquisa de SC.
É preciso evidenciar, no entanto, que os vários benefícios para a comunidade que poderão resultar dessa pesquisa não são seu objetivo: para que esses benefícios sejam possíveis, é preciso antes entender aspectos básicos das adaptações das plantas nativas (quais genes estão envolvidos, quais mecanismos fisiológicos e moleculares são acionados em condições extremas e como as plantas lidam com essa situação de stress), e isso sim são os objetivos centrais desta pesquisa. Os benefícios à comunidade serão consequência da aplicação desse conhecimento básico para a geração de produtos inovadores, porém não existe inovação sem a geração prévia de conhecimento científico.
Qual a importância do financiamento do Instituto Serrapilheira para desenvolver o estudo?
Sem o Instituto Serrapilheira provavelmente eu não teria condições de continuar minha linha de pesquisa com esse tema aqui na UFSC, devido à impossibilidade de conseguir financiamento. É preciso contextualizar que obtive este financiamento em 2018, imediatamente antes dos cortes obscenos ao financiamento científico por parte das agências federais. Como docente recém-contratada, recém-mãe, fazendo pesquisa com foco em questões básicas sobre evolução da biodiversidade, dificilmente eu teria conseguido financiamento público nacional para esta pesquisa, já que o foco da UFSC por pesquisas aplicadas e a pouca valorização da pesquisa básica por parte da gestão universitária fica evidente não só na pergunta anterior como também em vários editais internos da UFSC que presenciei desde que fui contratada. O Instituto Serrapilheira, por outro lado, foca especificamente na pesquisa básica, que não precisa ter aplicação imediata – porém permite explorar possibilidades que trarão retorno social e financeiro muito maiores no longo prazo do que estudos aplicados no curto prazo, como explicitados na resposta à pergunta anterior.
O Instituto também se diferencia por permitir uma grande flexibilidade no uso dos recursos, sem as amarras e entraves burocráticos que a maioria das agências de fomento estatais apresentam. Essa flexibilidade estende-se também a mitigar os entraves que grupos minoritários enfrentam ao fazer ciência. Por exemplo, quando usufruí do financiamento do Instituto, minha filha tinha apenas 2 anos e uma das atividades que realizei foi uma viagem de 1 mês para os EUA, onde visitei vários laboratórios e estabeleci parcerias muito importantes para a continuidade do projeto. Eu não poderia ter viajado por 1 mês para o exterior sem minha filha, e também não poderia levá-la comigo sem uma babá, que foi o que fiz. Embora eu tenha optado por não utilizar recursos do auxílio para custear as despesas de ambas (minha filha e a babá), eu poderia ter feito isto. E, mesmo eu arcando pessoalmente com as despesas delas, a agência de viagens contratada pela fundação que mediou todo o projeto foi capaz de emitir todas as passagens e seguros viagem em conjunto, enquanto as notas fiscais foram emitidas separadamente sem que isso causasse um problema durante a prestação de contas, o que provavelmente seria impossível em uma prestação de contas de um projeto financiado por uma agência de fomento pública.
São coisas pequenas e aparentemente sem importância mas capazes de tomar um tempo e causar um desgaste insano no dia-a-dia de um pesquisador, que poderia simplesmente focar toda sua capacidade de realização na resolução de grandes problemas científicos mas que muitas vezes acaba deixando de trabalhar devido à ineficiência na gestão dos recursos de pesquisa causada pelas agências de fomento. O Instituto Serrapilheira representa um marco para a ciência nacional por simplesmente exemplificar que dá para fazer diferente e focar no potencial e na excelência da pesquisa científica.
Suzana durante estudo de campo, em 2018. (Foto: acervo pessoal)
Escrito por Mariana Oliari
Bolsista de jornalismo da Pró-reitoria de Pesquisa – UFSC