Blockchain: O que é e quais mudanças estão por vir?

09/12/2019 08:00

 

Créditos: Convergência Digital – Ana Paula Lobo (https://administracaodigital.wordpress.com/2016/07/14/carimbo-de-tempo-100-nacional/)

Uma pesquisa com o termo blockchain na aba de notícias do Google mostra uma série de links e a esmagadora maioria foi publicada no máximo 20 horas antes da pesquisa. A tecnologia deu os primeiros passos no final da década passada e hoje figura como um potencial divisor de águas em diversos setores, cujo principal é o financeiro. Apesar de o debate sobre o tema estar muito atrelado às criptomoedas, a tecnologia também pode ser utilizada em outros segmentos.

Em evento de inovação, a Receita Federal premiou um projeto que visa utilização de blockchain em bases como CPF e CNPJ; o Tribunal de Justiça do Distrito Federal utilizou a tecnologia para colher votos em eleição para Quinto Constitucional; o HSBC planeja mover US$ 20 bilhões à Digital Vault, plataforma baseada em blockchain; a Kodak anunciou, no ano passado, o lançamento de um sistema derivado do blockchain que tem como o registro e proteção de uso indevido de fotos, o KodakOne.

Essas e outras utilizações apontam para o que a diretora-gerente do FMI, Christine Lagarde, chama de “diversificação do panorama financeiro”. Descentralização e agilidade contribuem para que essa e outras tecnologias semelhantes sejam cada vez mais presentes em operações financeiras e de demais naturezas. Essa crescente também possui vínculos na academia, que estuda melhorar a precisão e aperfeiçoar alguns aspectos da tecnologia.

Em entrevista à Pró-reitoria de Pesquisa, Martín Vigil, professor da UFSC e pesquisador do LabSEC, conta como sua pesquisa desenvolvida em parceria com a BRy trabalha para melhorar o desempenho do blockchain, objetivando resultados à frente da literatura atual. A pesquisa em questão dá enfoque à aplicação de tempestividade em blockchain e como o conceito pode precisar temporalidade de dados.

 

Em suma, como você resume o conceito de blockchain?

Os detalhes internos por dentro dessa tecnologia computacional confundem, mas podemos compreender o blockchain como um sistema distribuído, sem uma entidade central e controladora, que realiza contabilidade de “contas bancárias” que guardam criptomoedas. Qualquer pessoa pode voluntariamente utilizar seu computador para colaborar na contabilidade das contas no blockchain.  Mas hoje você já tem outros blockchains fazendo outras atividades e outros tipos de verificações.

 

Quais outras funcionalidades, além das atreladas a transações, que o blockchain pode desempenhar?

Eu vejo muito potencial em processos em que queremos minimizar a interferência humana e a possibilidade de corrupção. Toda vez que tivermos isso, blockchain é muito bem aplicado. Por exemplo, imagine um programa de computador na web que contabiliza votos de uma eleição, mas queremos evitar que a pessoa ou entidade que produziu ou mantém o programa possa modificá-lo para adulterar o resultado da eleição. Isso é possível através de programas de computador especiais chamados contratos inteligentes, que são executados no blockchain. Se criados corretamente, os contratos inteligentes são praticamente imunes a hackers ou qualquer outro tipo de interferência humana.

 

O que é o conceito de tempestividade?

Tempestividade tem a ver com dizer quando uma informação já existia. Por exemplo, se eu tenho uma ideia e solicito uma patente dela. Essa patente deve ser datada para identificar a partir de quando essa ideia já existia. E às vezes nós temos problemas e disputas onde uma pessoa diz que inventou primeiro uma invenção. Como por exemplo, a invenção do avião, disputada entre Santos Dummont e os irmãos Wright. Esse é um problema de tempestividade em que precisamos determinar qual informação veio primeiro. Uma solução é solicitar uma patente ao órgão competente. Outra solução é utilizar o blockchain.

 

E como esse conceito aumenta a eficácia na aplicação do blockchain?

No blockchain existem transações transferindo valores entre contas bancárias. A transferência só tem efeito após a transação ser validada pelos participantes voluntários do blockchain. Quando a transação é validada, os participantes registram a transação junto com a data e hora correntes em seus computadores. Esse registro provê tempestividade à transação, isto é, funciona como uma prova de que naquela data e hora a transação já existia. Esse processo tem sido explorado por muitas pessoas para prover tempestividade de documentos via blockchain. Mais precisamente, elas realizam uma transação movimentando uma quantia mínima de moeda no blockchain, mas incluem partes de um documento. A partir do momento que aquela transação for confirmada, ela fica nos registros do blockchain, e as pessoas usam os registros para provar a existência do documento. Eu poderia, por exemplo, registrar uma invenção colocando uma breve descrição da minha invenção em uma transação no blockchain. A partir do momento que a transação fosse confirmada e registrada no blockchain, seria garantida a tempestividade da minha transação e da invenção. Já existem empresas oferecendo esse serviço no blockchain e o objetivo da nossa pesquisa é aprimorar esse serviço, porque a datação não é muito precisa. Dependendo do tipo de blockchain, essa datação pode ter uma variação de, no mínimo, 9 minutos. Então estamos tentando trabalhar na precisão, para conseguir diminuir essa variação do tempo para a ordem de segundos. Um caso no qual a precisão atual do blockchain é insuficiente é no mercado de ações. Nele, as ordens de compra e venda de ações precisam ser processadas em ordem cronológica. Nesse caso, a imprecisão de nove minutos existente no blockchain é inaceitável, pois viabiliza fraudes conhecidas por “front-running”.

 

Qual é o quadro nacional e estrangeiro dos estudos em tempestividade e blockchain?

Do levantamento que nós fizemos, nenhum trabalho até o momento resolve o problema de precisão adequadamente. O trabalho mais próximo da nossa pesquisa que encontramos é de um pesquisador de Cingapura.

 

Quais serão os impactos na modernização das transações e como isso afeta o panorama bancário e financeiro no futuro?

Eu espero que novos produtos possam ser criados a partir disso. Hoje existem alguns trabalhos que tentam fazer o sistema de negociação de ações autônomo. Isto é, um sistema executado no blockchain ao invés dos datacenters de alguma instituição. Porém, na prática, a tempestividade imprecisa que temos inviabiliza esse tipo sistema. Segundo uma conversa com um colega que trabalha na bolsa de valores de Frankfurt, eles não acreditam que um dia será possível utilizar blockchain. Mas eu penso que talvez no futuro nós consigamos um serviço como esse ou então outros que possam ser criados. Essa é a ideia da pesquisa, que a gente possa viabilizar o surgimento de outros produtos que necessitam de uma precisão de tempo mais alta.

 

Como a implementação do blockchain interfere em eventos como lavagem de dinheiro?

Uma das maiores vantagens que temos hoje é conseguir reduzir custos para o usuário final. Atualmente é possível fazer transações internacionais, remessas e pagamentos, com custos bem mais baixos (centavos e frações de centavos) a uma velocidade muito maior. A tecnologia também traz uma gama de criações e aplicações computacionais mais seguras a interferências, em especial com problemas de corrupção ou manipulação. Eu acho que esses são os maiores benefícios. Já a questão da lavagem de dinheiro é um ponto bem controverso. Fala-se muito que essas moedas (criptomoedas) podem ser utilizadas para lavar dinheiro, o que é verdade, pois hoje conseguimos fazer transferências transpondo barreiras geográficas, mandando dinheiro de um ponto para outro no mundo em questão de segundos ou minutos. Mas isso tem que ser visto de maneira justa. Se embora exista possibilidade de fazer essa evasão de divisas, que permitirá dinheiro ilegal de entrar e sair, por outro lado a rastreabilidade desse dinheiro é muito mais fácil do que uma moeda convencional. Como exemplo, houve um caso de um traficante de drogas que recebia pagamentos em bitcoin e todos esses pagamentos eram públicos e a polícia conseguia monitorar sua conta bancária no blockchain. Então ele não conseguia esconder e utilizar esse dinheiro, porque no momento que ele movimentasse a polícia conseguiria ver. Ainda, no momento em que ele trocasse bitcoins por dólar precisaria interagir com um banco convencional ou pessoa física, revelando a sua identidade. Foi nesse momento que ele foi pego. Então, por um lado a tecnologia permite e facilita evasão de divisas e lavagem de dinheiro, por um outro, dificulta esconder criptomoedas das autoridades. Essa discussão das criptomoedas tem que ser discutida de modo mais justo, porque não são só vantagens para o crime que elas trazem, há também desvantagens.

 

Quais indústrias tendem a investir nessa tecnologia nos próximos anos?

Na vanguarda podemos citar a indústria de certificação digital pois há anos ela trabalha com a tecnologia antecessora ao blockchain. Nesta indústria está posicionada BRy Tecnologia, empresa consolidada de Florianópolis, financiadora deste projeto de pesquisa e fornecedora de soluções para segurança de documentos eletrônicos. A BRy aposta e sempre apostou na tecnologia como precursora de transformação digital e desburocratização segura para profissionais e empresas de diversos segmentos. No caso do blockchain, trabalha em conjunto com a Laboratório de Segurança em Computação (LabSEC, em Araranguá) para unir as vantagens do blockchain à precisão do carimbo do tempo, tecnologia que registra precisamente data e hora da transação e que corrobora para validação e segurança dos dados.

Quanto a outras indústrias, destaco o setor elétrico. Ele percebeu que em um futuro breve as pessoas vão gerar sua própria energia e irão trocar os seus excedentes. Então é preciso de um sistema de negociação no qual elas possam comprar e vender energia, preferencialmente sem ou com o mínimo de intermediários. Existem vários projetos de moedas digitais que são lastreadas em energia elétrica. Nos últimos anos, em especial no penúltimo e nesse último ano, existem projetos de pesquisa em desenvolvimento financiados pela ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica). Pelo que mapeamos, existem pelo menos três projetos sendo executados e financiados por grandes concessionárias de energia. Na UFSC, temos um projeto em processo de aprovação em parceria com a CPFL Energia envolvendo blockchain no setor elétrico.

Ainda quanto ao setor elétrico, lá fora algumas soluções baseadas em blockchain já são realidade. Por exemplo, em Nova Iorque quem gera sua própria energia (também conhecido por prosumidores) negociam seus excedentes usando blockchain. No caso do Brasil, nós ainda temos uma legislação que não permite fazer negociação de excedentes, mas eu creio que nos próximos anos isso tende a mudar, como em outros países. E, em outros contextos, não envolvendo o usuário final, a tecnologia pode ser aplicada.

 

A legislação acerca do blockchain impõe barreiras ou dificulta a implementação?

Não tenho acompanhado as mudanças de legislação de perto, mas até onde sei depende da aplicação. No setor elétrico, não se pode usar blockchain para compra e venda de energia elétrica no modelo de geração distribuída de energia elétrica. Na verdade o problema não é o blockchain, mas é impossibilidade de usuários finais que geram sua energia (por exemplo, com painéis fotovoltaicos) comercializarem seus excedentes. Outro exemplo de barreiras é no setor financeiro. Por exemplo, fundos de investimento brasileiros não podem investir diretamente em criptomoedas. Em contraste, houve notícias da Receita Federal planejando combinar blockchain e CPF para identificação de pessoas e o Banco Central buscando aplicar blockchain a transações bancárias convencionais.

 

Quais foram os resultados e avanços que vocês tiveram com a pesquisa até agora?

A pesquisa ainda está em andamento e no momento estamos realizando experimentos para validar na prática não só nossas avaliações teóricas sobre a precisão de tempestividade, mas também uma nova e mais precisa solução de tempestividade. Os experimentos estão ocorrendo no Ethereum, que é o segundo blockchain mais utilizado depois do Bitcoin. Os resultados parciais têm validado nossas avaliações e inclusive nos permitiram identificar anomalias no blockchain que poderiam ser utilizadas para fraudar tempestividade. Quanto à nova solução, ainda existem alguns desafios técnicos, mas estamos bem perto de atingir uma solução superior ao que se tem na literatura científica atual.

 

 

 

Prof. Martín Vigil – Laboratório de Segurança em Computação (LabSEC), UFSC Araranguá

BRy – Empresa nacional de tecnologia e certificação digital que abarca pesquisa, desenvolvimento, comercialização e suporte.

 
Eduardo Vargas – Bolsista de Jornalismo da Pró-reitoria de Pesquisa – UFSC